sábado, 17 de julho de 2010

O verdadeiro casamento bíblico

Há alguns anos escrevi um artigo intitulado “Concubinato não casa com bíblia”. Naquele texto, fazia uma comparação entre o casamento civil e a união estável, afirmando que a Bíblia acatava apenas o primeiro. Estava muito errado! E ainda que me critiquem por ter mudado de opinião, recebo as críticas, mas prefiro me enquadrar na famosa frase do presidente Juscelino Kubitschek: “Costumo voltar atrás, sim. Não tenho compromisso com o erro".

Após reflexão mais aprofundada sobre a questão, em circunstâncias que a vida me impôs, verifiquei que a instituição “casamento” a que a Bíblia se refere não é, necessariamente, o casamento civil.

Durante séculos prevaleceu a idéia, advinda dos romanos, de que o casamento se provava pelo affectio maritalis (ou seja, vontade do afeto e do auxílio mútuos, visando constituir vida em comum), e pela própria apresentação pública das pessoas como marido e mulher. Era, na prática, o que hoje chamamos de “união estável”.

A Igreja Católica Apostólica Romana, por entender que o casamento é um sacramento, passou a realizá-lo de forma cerimonial e, por outro lado, a só creditar valor aos casamentos por ela celebrados, como persiste até os dias atuais. Desde então o foco está no ato ou ritual de celebração, e não mais na união de um homem e uma mulher com o intuito de constituir família.

O casamento civil somente foi instituído no Brasil há 120 anos, por meio do Decreto 181, promulgado no dia 24.01.1890, de autoria do brilhante Ruy Barbosa. Até então “casamento” era o religioso, mais especificamente aquele celebrado pela Igreja Católica Apostólica Romana. Isto é, apenas com a proclamação da República, e a decorrente separação entre igreja e Estado, surgiu o casamento civil. Acerca desse tempo, o ilustre pastor Dinelcir de Souza Lima, em seu artigo intitulado “Casamento, ato constitutivo da família”, que pode ser lido na internet (http://entendaabiblia.blogspot.com/2009/05/casamento-ato-constitutivo-da-familia.html - acessado em 25.05.2010), assim relata:

No Brasil, inicialmente dominado religiosamente pela Igreja Romana, a sociedade só considerava como ato lícito para efetivar o casamento, o ritual praticado por aquela igreja. Os que não praticavam a religião católica e eram de igrejas protestantes ficavam à margem da sociedade quanto ao casamento e se uniam, como nos tempos bíblicos, com propósitos pessoais de casamento. As igrejas protestantes os aceitavam como casados.”

No período compreendido entre a publicação do referido decreto, em 1890, e o advento da lei 379, em 1937, o Estado brasileiro reconheceu apenas a existência do casamento civil. O religioso era ignorado. A lei 379/1937, porém, surgiu para possibilitar que o casamento religioso fosse revestido de efeitos civis, como ocorre até hoje (embora a legislação tenha sido alterada inúmeras vezes, essa norma encontra hoje respaldo no Código Civil de 2002).

Mesmo no período entre 1890 e 1937, a Igreja Católica no Brasil não se importou com a ausência de reconhecimento, por parte do Estado, ao seu casamento... continuava a realizá-lo, embora sem efeitos civis. Como já dito – e nisto deve-se reconhecer a coerência dos católicos – até os dias atuais aquela igreja não se queda ao império do casamento civil, pois defende que o matrimônio é “sacramento” e, como tal, só é válido quando por ela celebrado – e a intenção, aqui, não é de ratificar a idéia, errônea, de existência ou necessidade de “sacramentos” (muito menos ainda que o matrimônio seja um sacramento), mas sim de exaltar a coerência da Igreja Romana ao deixar de lado as normas ditadas pelo Estado, sempre que estas colidam com sua fé.

Assim, entendo que o casamento verdadeiramente bíblico é aquele em que um homem e uma mulher se unem, com intenção de constituir núcleo familiar, clamando as bênçãos de Deus. Não vejo como essencial (embora seja bonito) um evento religioso e, muito menos, um contrato de casamento nos moldes da lei civil (sim, para tristeza dos “puristas”, aos olhos da lei o casamento civil tem natureza jurídica de contrato).

Para melhor compreendermos a alma do casamento bíblico, é interessante vermos como ocorreu um dos casamentos mais importantes da história, o de Isaque e Rebeca: “E Isaque saíra a orar no campo, à tarde; e levantou os seus olhos, e olhou, e eis que os camelos vinham. Rebeca também levantou seus olhos, e viu a Isaque, e desceu do camelo. E disse ao servo: Quem é aquele homem que vem pelo campo ao nosso encontro? E o servo disse: Este é meu senhor. Então tomou ela o véu e cobriu-se. E o servo contou a Isaque todas as coisas que fizera. E Isaque trouxe-a para a tenda de sua mãe Sara, e tomou a Rebeca, e foi-lhe por mulher, e amou-a. Assim Isaque foi consolado depois da morte de sua mãe.” (Gênesis 24, 63-67). Eles se amaram, decidiram constituir família e Deus os abençoou... não houve celebrante, o casamento foi selado pela união sexual do casal. Recorrendo, novamente, ao artigo do ilustre pastor Dinelcir, observo que “...Na realidade, o ato que efetiva a união entre homem e mulher, que faz com que se tornem um só corpo, não é uma declaração formal de algum líder religioso, ou de algum juiz de paz, mas o ato sexual”. Muitas vezes nós complicamos aquilo que Deus criou de forma tão bela e simples! Ato sexual entre homem e mulher com o propósito de constituir família, ambos assumindo a responsabilidade pela vida em comum é, sim, a celebração do casamento diante de Deus. É a partir daí que o Senhor os faz “uma só carne”, em verdadeira comunhão plena de vidas.

Ocorre que muitas igrejas evangélicas, certamente alimentadas pelo correto desejo de manter a aparência do que é “certo”, insistem em reverenciar o casamento civil como única forma de união abençoada por Deus. Com isso, se um casal desejar se unir apenas “no religioso”, não lhes é permitido, renegando, por via de consequência, a eficácia do casamento por elas próprias celebrado! E aqui, deve-se frisar, não pretendo defender a idéia da celebração religiosa do casamento – a qual considero desnecessária para caracterizá-lo; apesar de reconhecer sua beleza e importância como um “marco” na vida do casal e como gratidão a Deus pela benção recebida – mas sim a incoerência de igrejas que entendem por bem proceder à cerimônias religiosas celebrativas de casamento, quando elas próprias não aceitam o ato por elas realizado, se este não for revestido de valor civil (seja por meio de um casamento civil realizado anteriormente, seja através da concessão de efeitos civis ao casamento religioso). Em suma, quem assim procede demonstra entender que só os civilmente casados podem ter uma união abençoada por Deus e reconhecida pela igreja, o que é um absurdo.

Que fique claro que não defendo que casamento civil não tenha importância ou utilidade. Minha intenção é desmistificar o casamento civil como única forma de união aceita pelas igrejas do Senhor Jesus. É que essa postura não encontra respaldo bíblico. E não se diga que o texto de Romanos 13 impõe a submissão às autoridades, eis que nada tem a ver uma coisa com a outra. A uma, porque o casamento civil não é norma impositiva (a própria Constituição Federal reconhece como núcleo familiar, tanto quanto o casamento, aquele decorrente de união estável entre homem e mulher). A duas, porque o texto, ao falar em submissão às autoridades constituídas, não impõe concordância com tudo o que elas venham a estabelecer, necessitando que as normas sejam observadas pelo filtro bíblico. A três, porque não se deve aceitar que conceitos bíblicos venham a ser ditados pela legislação laica – e a constituição de família é conceito bíblico, muito anterior à criação do próprio Estado.

Como exemplo, sugiro que pensemos nas seguintes situações: se o legislador brasileiro, num devaneio (que não é raro, o que dirá impossível de acontecer), decidir que pessoas viúvas não podem se casar novamente... a igreja vai simplesmente aceitar isso? Ou se a lei civil decidir proibir casamento entre parentes de quarto grau (primos) e em nossa igreja houve um casal de primos que se amam e desejam constituir família, vamos, simplesmente, negar essa união? Ou, ainda, numa realidade que, infelizmente, se aproxima, vier a permitir o casamento entre pessoas do mesmo sexo, a igreja vai também seguir a lei civil?

Creio que precisamos ser razoáveis, tolerantes, analisar caso a caso com amor, misericórdia e sabedoria. A intransigência, às vezes fere, magoa. E em nome dessa intransigência é que muitas vezes pessoas são acusadas de prostituição ou adultério quando, na verdade, estão devidamente casadas diante de Deus. Recordo, aqui, de uma situação ventilada pelo pastor Dinelcir de Souza Lima no artigo acima referido, acerca da imposição do casamento civil como pré-requisito para o batismo de pessoas que se convertem. Nas palavras dele: “não precisamos ‘casar’ pessoas que se convertem, para que possam ser batizadas; não fazemos discriminação de pessoas que se ‘casaram’ em algum tipo de ritual religioso, uma vez que sabemos que os rituais não têm valor algum para o casamento...”. Ainda que não tenha total concordância com ele, Pr. Dinelcir, especialmente com relação ao conceito de necessidade de buscar os meios de reconhecimento da sociedade, admiro sua sabedoria no trato da situação, bem como sua coragem em admitir que o “padrão” atualmente imposto às (e pelas) igrejas, em matéria de casamento, não é, necessariamente, o que a Bíblia ensina.

Espero, sinceramente, que cada dia mais o legalismo dê lugar ao amor e à misericórdia no ceio das igrejas do Senhor Jesus Cristo, nunca perdendo de vista que a Bíblia é a única regra de fé e prática.